A Alfaguara, como já contei aqui num post anterior, está relançando a poesia completa de Mario Quintana, em três volumes (acho que são três).
Do prefácio que escrevi para o primeiro deles:
‘Consta que se ouvia de Mario Quintana, ao lhe perguntarem se que ele tinha mesmo querido dizer isso ou aquilo com determinado poema (pergunta-assombração que vive no encalço de todos os poetas), a resposta: Mas eu nem sei se quis dizer alguma coisa…
Por trás de uma poesia sem artificalismos, simples, singela, um homem idem. Que poderia cantar com o Peter Gast de Caetano Veloso, “sou um homem comum, qualquer um.” E não obstante sonhar com o ingresso no céu depois da morte, conduzindo por anjos “num palanquim dourado, entre um curioso povo de profetas e virgens,” lamentando contudo a ausência dos seus desafetos: “Eu só queria era ver a cara deles, ver a cara que eles fariam quando me vissem passar, tirado por anjos, num palanquim de ouro!” (“Inferno”)
Quem luta para encontrar a simplicidade na escrita ou na vida sabe que ela é tudo menos fácil. A crítica enfatiza a “falsa simplicidade da poesia de Mário Quintana.” Eu falaria da simplicidade genuína que encontro ali. E nada mais difícil de alcançar com as palavras. O caroço da escrita, por assim dizer. A essência que não requer nada de “abscôndito” – no delicioso “Acidente de leitura,” Quintana relata: “Tão comodamente que eu estava lendo, como quem viaja num raio de lua, num tapete mágico, num trenó, num sonho. Nem lia: deslizava. Quando de súbito a terrível palavra apareceu, apareceu e ficou, plantada ali diante de mim, focando-me: ABSCÓNDITO. Que momento passei!…”
Pois nos poemas de Quintana a gente desliza. Não há nada de abscôndito, não há tropeços, não há mistérios oclusos. Falar de “falsa simplicidade” significa atribuir um valor negativo à simplicidade, e reafirmar a qualidade do poeta com essa espécie de alto-lá. Mas em um mundo cada vez mais norteado pelo acúmulo, pelo excesso e pelo ruído (branco, muitas vezes: essa superposição de barulhos sem sentido algum), que por sua vez engendram a superficialidade e o rápido descarte, a simplicidade não apenas parece ser um valor positivo: ela é estratégia de sobrevivência.
Por isso, considero a poesia de Mario Quintana mais necessária do que nunca. Pois a vida se aperfeiçoou em interromper os momentos atentos à vida, como disse de modo tão exato o meu amigo Malcolm McNee, professor em Smith College, com quem ensaiei em conjunto uma tradução para o inglês de “Momento,” um dos poemas deste volume (“O homem parou, cheio de dedos, para procurar os fósforos nos bolsos. A insidiosa frescura do mar lhe mandou um pensamento suicida. E veio um riso límpido e irresistível — em i, em a, em o — do fundo de um pátio da infância. Um riso… Senão quando o homem achou os fósforos e a vida recomeçou. Apressada, implacável, urgente. A vida é cheia de pacotes…”)
Ao tentar traduzir Quintana, aliás, vemos mais uma vez como o simples não raro requer muito esforço. O “fundo de um pátio da infância,” essa imagem despojada e ainda assim úmida de sentimento, ou a constatação de que “a vida é cheia de pacotes,” um cutucão na falta de olhos atentos ao que está em curso enquanto nos ocupamos com caixas de fósforos. Quanta coisa, na simplicidade dos quintanares. “Eu nada entendo da questão social. Eu faço parte dela, simplesmente,” o poeta escreve, e com isso reivindica a experiência que ultrapassa em muito qualquer consideração que se possa fazer sobre ela. Assim é que o silêncio das salas de espera ou a ruazinha em que Marta fia podem conter o mundo inteiro, ao modo do grão de areia de William Blake.’
E por aí vai. Quem puder aparecer lá no IMS amanhã, vá. Além de Quintana, dois caras de quem sou fã de carteirinha: Italo Moriconi e Eucanaã Ferraz.
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Falando em Alfaguara, a Granta número 10, que sai em novembro, traz um conto inédito meu: “Aquele ano em Rishikesh,” inspirado por uma canção de George Harrison. Vamos ver.
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