Archive for the ‘poesia em português’ Category

De aqui

ESPAÇO PREENCHIDO

(Ruy Belo)

 

Somos todos de aqui. Basta-nos a pátria

que uma tarde de domingo nos consente

entre folhas de outono e frases de abandono

E abrem-se-nos ruas

para ir a sítios demasiado precisos

quando um sítio só se encontra

ao fim de todas as ruas e de todos os rios

Somos todos da raça dos mortos

ou vivos mais além

Mensagens de outra pátria não as traz

arauto algum que o nosso tempo vestisse

 

O que é preciso é dar lugar

aos pássaros nas ruas da cidade

 

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Em breve, chega às livrarias o novo livro da poeta Mariana Ianelli (O amor e depois, Iluminuras), de quem sou leitora e admiradora. Abaixo, o texto que tive a honra e o prazer de escrever para a orelha do livro.

Conheci a poesia de Mariana Ianelli através de seu livro Fazer silêncio, cujo título já de saída me conquistou: essa exortação, num mundo extrovertido, um mundo compulsivamente loquaz e de ruído em excesso, parece mais do que atrevida: é revolucionária, talvez. Será possível, então, uma espécie de escrita silenciosa? Esta jovem poeta de mão segura confirma que sim. O silêncio está muitas vezes atrelado a uma frequência íntima de reflexão, de contemplação, de espera e temperança, qualidades que encontrei na poesia de Mariana. Uma poesia que não sobra, que não vaza, nem mesmo quando deslumbra.

Na primeira oportunidade me lancei a seus outros livros já publicados, até ter o privilégio de ler os originais de O amor e depois. Encontrei aqui o mesmo cuidado com as palavras que, como disse Jair Ferreira dos Santos, “é severo mas não exclui, antes reforça, a espontaneidade.” Uma “dicção ao mesmo tempo culta, comovente e perturbadora,” como quis ainda Antonio Carlos Secchin.

A língua é companheira de Mariana, é um instrumento que ela usa com a habilidade dos mestres. E como todo mestre, ela renova sua arte. Seus versos, que passam longe do exibicionismo formal e são antes o peneirar do ouro no rio, trazem imagens como o “halo de majestade / dos tigres à beira da extinção,” no belíssimo “Tigres brancos,” ou confirmam: “O amor, até o amor existe, / “Um lunático mendicante que vadia pela terra / À espera de outra chance.” (“Miragem”).

Mas ela é uma artesã cuja poesia nunca revela a costura. O domínio incomum que Mariana tem da escrita nos faz acreditar que, afinal, não há esforço no esforço que seguramente empenhou ali. E o tempo todo sua poesia silenciosa mas possante como poucas na cena contemporânea exorta que nossos olhos “estejam vivos e curiosos (…) / E olhem para dentro alguma vez / E o que vejam / Seja alguma força de sequóia / Presa à terra desde o império de outros tempos” (“Os teus olhos”).

Estaremos à altura da tarefa? Aí está o desafio lançado por Mariana Ianelli. A satisfação que foi para mim a descoberta de sua obra, há alguns anos, vem agora se aliar à alegria de reencontrá-la neste O amor e depois, sempre surpreendente, e absoluta senhora do seu ofício.

Não me restam dúvidas de que estes versos vazados pela temática do amor (e do seu fim, e do que vem depois) – mas não apenas isto – exigem que eu seja uma leitora competente, de olhos e ouvidos atentos. Mas só tenho a ganhar com isso. Pois, como lembra o poeta e editor americano Christian Wiman, acercamo-nos da poesia “para poder habitar de modo mais completo nossas vidas e o mundo em que as vivemos – e para que, sendo capazes de habitá-los mais integralmente, sejamos talvez menos aptos a destruí-los.”

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A Alfaguara, como já contei aqui num post anterior, está relançando a poesia completa de Mario Quintana, em três volumes (acho que são três).

Do prefácio que escrevi para o primeiro deles:

‘Consta que se ouvia de Mario Quintana, ao lhe perguntarem se que ele tinha mesmo querido dizer isso ou aquilo com determinado poema (pergunta-assombração que vive no encalço de todos os poetas), a resposta: Mas eu nem sei se quis dizer alguma coisa…

Por trás de uma poesia sem artificalismos, simples, singela, um homem idem. Que poderia cantar com o Peter Gast de Caetano Veloso, “sou um homem comum, qualquer um.” E não obstante sonhar com o ingresso no céu depois da morte, conduzindo por anjos “num palanquim dourado, entre um curioso povo de profetas e virgens,” lamentando contudo a ausência dos seus desafetos: “Eu só queria era ver a cara deles, ver a cara que eles fariam quando me vissem passar, tirado por anjos, num palanquim de ouro!” (“Inferno”)

Quem luta para encontrar a simplicidade na escrita ou na vida sabe que ela é tudo menos fácil. A crítica enfatiza a “falsa simplicidade da poesia de Mário Quintana.” Eu falaria da simplicidade genuína que encontro ali. E nada mais difícil de alcançar com as palavras. O caroço da escrita, por assim dizer. A essência que não requer nada de “abscôndito” – no delicioso “Acidente de leitura,” Quintana relata: “Tão comodamente que eu estava lendo, como quem viaja num raio de lua, num tapete mágico, num trenó, num sonho. Nem lia: deslizava. Quando de súbito a terrível palavra apareceu, apareceu e ficou, plantada ali diante de mim, focando-me: ABSCÓNDITO. Que momento passei!…”

Pois nos poemas de Quintana a gente desliza. Não há nada de abscôndito, não há tropeços, não há mistérios oclusos. Falar de “falsa simplicidade” significa atribuir um valor negativo à simplicidade, e reafirmar a qualidade do poeta com essa espécie de alto-lá. Mas em um mundo cada vez mais norteado pelo acúmulo, pelo excesso e pelo ruído (branco, muitas vezes: essa superposição de barulhos sem sentido algum), que por sua vez engendram a superficialidade e o rápido descarte, a simplicidade não apenas parece ser um valor positivo: ela é estratégia de sobrevivência.

Por isso, considero a poesia de Mario Quintana mais necessária do que nunca. Pois a vida se aperfeiçoou em interromper os momentos atentos à vida, como disse de modo tão exato o meu amigo Malcolm McNee, professor em Smith College, com quem ensaiei em conjunto uma tradução para o inglês de “Momento,” um dos poemas deste volume (“O homem parou, cheio de dedos, para procurar os fósforos nos bolsos. A insidiosa frescura do mar lhe mandou um pensamento suicida. E veio um riso límpido e irresistível — em i, em a, em o — do fundo de um pátio da infância. Um riso… Senão quando o homem achou os fósforos e a vida recomeçou. Apressada, implacável, urgente. A vida é cheia de pacotes…”)

Ao tentar traduzir Quintana, aliás, vemos mais uma vez como o simples não raro requer muito esforço. O “fundo de um pátio da infância,” essa imagem despojada e ainda assim úmida de sentimento, ou a constatação de que “a vida é cheia de pacotes,” um cutucão na falta de olhos atentos ao que está em curso enquanto nos ocupamos com caixas de fósforos. Quanta coisa, na simplicidade dos quintanares. “Eu nada entendo da questão social. Eu faço parte dela, simplesmente,” o poeta escreve, e com isso reivindica a experiência que ultrapassa em muito qualquer consideração que se possa fazer sobre ela. Assim é que o silêncio das salas de espera ou a ruazinha em que Marta fia podem conter o mundo inteiro, ao modo do grão de areia de William Blake.’

E por aí vai. Quem puder aparecer lá no IMS amanhã, vá. Além de Quintana, dois caras de quem sou fã de carteirinha: Italo Moriconi e Eucanaã Ferraz.

Falando em Alfaguara, a Granta número 10, que sai em novembro, traz um conto inédito meu: “Aquele ano em Rishikesh,” inspirado por uma canção de George Harrison. Vamos ver.

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Acaba de sair o primeiro volume da poesia completa de Mario Quintana, pela Alfaguara: “Canções” – seguido de “Sapato florido” e “A rua dos cataventos.”

A apresentação do livro é minha, com a dupla alegria de estar ali juntinho com Quintana e na bela edição da que é também minha nova casa editorial.

Depois de traduzir algumas coisas para a Alfaguara/Objetiva, inclusive dois livros do Cormac McCarthy (entre os trabalhos de tradução mais difíceis que fiz na vida) e de publicações na revista Granta e numa bonita antologia deles chamada Carta para você (escrevi uma carta para Manuel Bandeira), a gente se prepara para lançar em 2013 o meu novo romance pela Alfaguara, que vai relançar os anteriores também.

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Revisitando O guardador de rebanhos.

XXIV

O que nós vemos das cousas são as cousas.
Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra?
Por que é que ver e ouvir seriam iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?

O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê
Nem ver quando se pensa.
Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender
E uma sequestração na liberdade daquele convento
De que os poetas dizem que as estrelas são as freiras eternas
E as flores as penitentes convictas de um só dia,
Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas
Nem as flores senão flores,
Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores.

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Dois dessa poeta inspirada, com a bela apresentação do Carlito Azevedo – para a última edição de “Risco,” a coluna dele sobre poesia publicada mensalmente no caderno Prosa e Verso de O Globo.

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Tive a honra e o prazer de ajudar a organizar, junto com as universidades de Illinois em Urbana-Champaign, Northwestern, Yale, Colorado em Boulder e Smith College, e com o apoio também da ONG US-Brazil Connect, uma série de leituras e palestras da Claudia Roquette-Pinto aqui nos EUA, em quatro estados.

Na próxima semana ela estará aqui no Colorado. Bem vinda!

Abaixo, um dos meus poemas preferidos de Margem de manobra (Aeroplano, 2005), seu livro mais recente.

SÍTIO

O morro está pegando fogo.
O ar incômodo, grosso,
faz do menor movimento um esforço,
como andar sob outra atmosfera,
entre panos úmidos, mudos,
num caldo sujo de claras em neve.
Os carros, no viaduto,
engatam sua centopéia:
olhos acesos, suor de diesel,
ruído motor, desespero surdo.
O sol devia estar se pondo, agora
_ mas como confirmar sua trajetória
debaixo desta cúpula de pó,
este céu invertido?
Olhar o mar não traz nenhum consolo
(se ele é um cachorro imenso, trêmulo,
vomitando uma espuma de bile,
e vem acabar de morrer na nossa porta).
Uma penugem antagonista
deitou nas folhas dos crisântemos
e vai escurecendo, dia a dia,
os olhos das margaridas,
o coração das rosas.
De madrugada,
muda na caixa refrigerada,
a carga de agulhas cai queimando
tímpanos, pálpebras:
O menino brincando na varanda.
Dizem que ele não percebeu.
De que outro modo poderia ainda
ter virado o rosto
: “Pai!
acho que um bicho me mordeu!” assim
que a bala varou sua cabeça?

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FAZER SILÊNCIO

Seja o ar da montanha
Para o sono dos cordeiros.

Neve recém-caída,
Puríssimo grão de açúcar,
Duna sob a lua cheia.

Tal qual o fruto da terra
Que se dá a comer no sexto dia.

Jazida inexplorada,
Casa sem mobília,
Vácuo do não-dito,
Êxtase nunca interrompido.

Tal como o olho cego
Que percebe o invisível,
Gema de opalina.

Seja o restante, o indiviso.

Magma transmudado em cinza,
Fóssil na noite da cripta,
O vaivém milenar da água viva,
Líquido momento de sentir
E estar sozinho.

Fazer silêncio.

*

De Fazer Silêncio (2005)

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