Escrevi para a Revista Emília o texto abaixo, sobre o livro da Lygia Bojunga. Para a série “Livro de infância” que a Emília inaugurou recentemente com um texto super bacana do Rodrigo Lacerda.
O sofá estampado: romance de formação de um tatu
As estranhezas meio tristes da vida de Vítor e minha mala surrada
Por Adriana Lisboa
Adriana Lisboa nasceu no Rio de Janeiro. Graduada em música pela UniRio, tem mestrado em literatura brasileira e doutorado em literatura comparada pela Uerj. Já foi cantora, mas atualmente é escritora e tradutora. Publicou dez livros, entre eles: Azul-corvo (romance, 2010, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura), Sinfonia em branco (romance, 2001, Prêmio José Saramago), Língua de trapos (infantil, 2005, Prêmio autor revelação e altamente recomendável – FNLIJ) e O coração às vezes para de bater (novela juvenil, 2007, adaptado para o cinema por Maria Camargo), entre outros.
Das leituras da infância, guardo na memória os Lobatos e a Coleção Vaga-Lume da editora Ática, que eu lia vorazmente (O caso da borboleta Atíria, O escaravelho do diabo, de Lúcia Machado de Almeida, O mistério do cinco estrelas, de Marcos Rey), as Memórias de um cabo de vassoura, do Orígenes Lessa, O menino do dedo verde, de Maurice Druon. Mas quando penso nas leituras dessa época, existe um canto muito especial (como que escavado por um tatu dentro das almofadas de um pequeno sofá de dois lugares, amarelo – aliás, tenho um assim em casa hoje, embora o meu seja sério, liso, de um amarelo-mostarda mais fechado e adulto) para O sofá estampado, da Lygia Bojunga.
Quando eu era criança, havia uma livraria perto da nossa casa, em Laranjeiras, no Rio de Janeiro, chamada Entrelivros (hoje é uma drogaria). Ficava na entrada de uma galeria, onde também havia uma adorada confeitaria que hoje é uma loja de cosméticos importados e duas salas de cinemas que viraram igreja evangélica. Eu ia com frequência à Entrelivros com meu pai: era onde comprava presentes quando tinha festas de aniversário. E por um hábito que não sei por que se criou, meu pai concordava em comprar livros vezes dois: o do presente e mais um exemplar para mim. Talvez eu suspeitasse que por trás daquelas capas havia experiências sensacionais de que eu precisava me inteirar também. Como entregar aquelas senhas para os aniversariantes sem saber o que havia do outro lado?
Foi assim que os livros da Vaga-Lume, por exemplo, vieram parar nas minhas mãos. O sofá estampado veio através de um outro livro da Lygia Bojunga, Corda bamba, que por sua vez veio através da minha amiga Dedé, mentora de algumas leituras. Um pouco antes da nossa fase adolescente embalada por George Orwell e Pink Floyd, ela me falou do tal Corda bamba. Li. Havia uma estranheza ali, um desajuste qualquer, algo que me deslocava do centro. Era um pouco triste. E era bom, por isso mesmo: um não-sei-quê de melancolia, de espaços cinzentos vazios, que eu queria poder espiar e sabia que teria que pisar com cuidado de modo a não dissolver o silêncio. O silêncio era grave e importante. Li dela também Os colegas (que reli uns trinta anos mais tarde com meu filho) até que cheguei a O sofá estampado. Foram todos eles comprados na saudosa Entrelivros, onde hoje, ironicamente, compro xampu e analgésico quando vou ao Rio.
Meu primeiro exemplar de O sofá estampado há muito se foi e o que tenho hoje é uma edição de 2004, já publicada pela Casa Lygia Bojunga, a editora criada em 2002 para reunir sob um mesmo teto as obras da autora. De todo modo, nunca me esqueci de Vítor nem, sobretudo, do sofá. “Amarelo bem clarinho, todo salpicado de flor; ora é violeta, ora é margarida, e lá uma vez que outra tem também um monsenhor.”
Vítor era um tatu. Mais adiante no livro ele vira um tatu militante, empenhado em defender a floresta e seus moradores – ó, Vítor, se você ainda está por aí trinta anos passados deve andar bem desapontado – mas o que me atraiu nele não foi isso. Vítor era um sujeito calado, que cavava buracos para não precisar ser visto, e para esconder também seus acessos incontroláveis de tosse nervosa. Eu achava incrível que ele conseguisse cavar buracos em qualquer canto (no sofá, inclusive, atravessando molas, piso, aparentemente sem ter de parar nunca) e que com frequência essas escavações fossem dar em lugares mágicos.
Como aquela rua. Uma rua estranha e desabitada onde uma mulher sem rosto passava trazendo um lenço fino de seda, com a mesma estampa do sofá. Desconfiei da mulher desde o início. Não vai lá não, Vítor, eu pensava. Boa coisa não é. Mas eu me sentia atraída pela rua deserta assim como ele: um lugar de silêncio, de profundo anonimato, de não-acontecimentos, talvez só como o que se pode encontrar na… morte?
Vítor cavava em busca de refúgio. Ao mesmo tempo, ele tinha seus afazeres aqui na superfície: a gata-sofá que namorava, Dalva, a mais assídua telespectadora do mundo, que o Vítor precisou conquistar entrando na tevê e virando garoto-propaganda de um sem número de produtos, desde o xarope Vida Nova até os cigarros Status e a cerveja Plus. Teve uma patroa por uns tempos, a histriônica Dona Popô, ex-moradora do zoológico que dirigia uma agência de publicidade. Teve uma avó que lhe deixou de herança uma maleta e os gens militantes. Tinha pais, tatus de classe média. Todos esses personagens transitam pelo livro – junto com a Dona-da-casa e de Dalva, junto com o Inventor, que tem um papel coadjuvante mas importantíssimo – e pela vida de Vítor numa espécie de saudável confusão.
O sofá estampado é um romance de formação de um tatu, mas é a história de como qualquer um de nós tenta encontrar um lugar na vida – e quando falo de lugar não falo de status (não: isso é marca de cigarro). Um lugar que, mesmo frustrando expectativas externas e mesmo tendo que necessariamente acolher a dor – Vítor precisa lidar com perdas e rejeições – seja o nosso. E não precise ser o fundo de um buraco.
Mas é claro que esta é a leitora adulta falando. Quando era criança, não pensei em nada disso. Apenas embarquei naquela estranheza meio triste da vida do Vítor e de suas escavações sem limites e de seu desajuste sintetizado na tosse incontrolável das situações de risco, que ao mesmo tempo bordejavam alguma coisa maior. Eu sabia: cavar o sofá estampado tinha um significado. Eu não sabia exatamente o que era. Eu não era tatu, nem tinha garras para escavar tecido e chão, embora até sentisse vontade de tentar. Mas imagino que estava em busca de algo bem parecido. Escrevi cartas de amor que nunca foram lidas, fui garota-propaganda de cerveja Plus para que me vissem e admirassem (será que me viram? será que me admiraram?), disse peraí, minha gente, não quero ser vendedora de carapaças de plástico quando crescer. Tive acessos incontroláveis e constrangedores de tosse. Conheci Donas Popôs, Inventores, e já vi a mulher sem rosto na rua de casas desabitadas enroscar seu lenço de seda aqui, ali. Hoje sou um Vítor crescido, tentando manter dentro de uma pequena mala surrada aquilo que considero realmente importante. Não é fácil. Mas nunca pensamos que seria.
* * *
Trecho do livro:
Quando a Dona Popô viu o filme, pensou logo “a venda de xarope vai disparar”. E disparou. O comercial foi um sucesso! todo mundo fez estoque de Vida Nova em casa.
O Vítor se impressionou com o sucesso; telefonou para Dalva. Ela gritou:
– Vi você na tevê! Vi você na tevê! Adorei. A minha dona já comprou.
– Você está com tosse?
– Eu não, mas a tevê não disse pra gente comprar?
Aí o Vítor não aguentou mais: se agarrou no telefone e desabafou:
– Dalva, quero te namorar!
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O sofá estampado foi publicado em 1980 pela José Olympio. Recebeu vários prêmios, entre eles o Prêmio o Melhor para o Jovem – FNLIJ, o APCA (Associação Paulista de Críticos de Artes), ambos em 1980, e o Prêmio Bienal Banco Noroeste de Literatura Infantil e Juvenil, em 1982. Entre outros, Lygia recebeu o Prêmio Hans Christian Andersen (1982) e o ALMA (2004, Astrid Lindgren Memorial Award), ambos pelo conjunto da obra.
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